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Apocalipse ou Revelação do Apóstolo S. JOÃO, O TEÓLOGO
texto de apresentação para o lançamento da edição, 9 de Setembro de 2011, Teatro da Cornucópia

A BÌBLIA COMO LEITURA

Durante os últimos dois anos, temos ensaiado com Luís Miguel Cintra (e tenho de dizer, temos contado com a generosidade absolutamente invulgar de Luís Miguel Cintra) para um projecto de leitura integral de alguns livros bíblicos, muito perto daqui, na Capela do Rato. As comunidades cristãs têm um contacto permanente com esses livros, mas um contacto adaptado ao contexto da liturgia: lêem-se e comentam-se, de cada vez, apenas pequenas fracções textuais, e leva-se, por exemplo, um ano para ler um livro. É uma experiência humana curiosa, esta leitura sem pressas, esquecida muitas vezes dos fios da narrativa, para se prender melhor, e por vezes, para prender-se quase unicamente aos fios invisíveis de uma escuta espiritual e comunitária. Mas tem também limites óbvios se se deixar ficar simplesmente por aí. Sacraliza-se tanto os livros sagrados que se esquece que eles são também livros (e que, precisamente, na sua profanidade rasurante, naquilo que os aproxima indistintamente de qualquer texto se joga também a possibilidade de colher, ou de ao menos entrever, o que faz deles sagrados).

Um texto sagrado não é um texto intocável. A leitura deve operar sobre o texto, desconstruindo-o e recompondo-o. É impossível accionar o processo interactivo sem o manuseio. A voz, os acentos, os sentidos, a cadência rítmica tornam-se procedimentos hermenêuticos relevantes para «apreciarmos o plural de que o texto é feito». A leitura não é só leitura, mas rasgão, espanto, audição, respeito e despeito, entrar e ficar à porta, continuar e recriar. Só desse modo se pode entender o que o último dos Padres da Igreja do Ocidente, Gregório Magno, deixou escrito nas suas Homilias ao Livro de Ezequiel: Scriptura cum legentibus crescit, «A Escritura cresce com os quem a lêem».

A palavra Bíblia é relativamente recente para definir o corpus literário sagrado. Durante séculos ele chamou-se Miqra (termo hebraico para leitura comunitária e em alta voz). Quer dizer: A Bíblia foi leitura antes de ser livro. E nela persistem marcas dessa gestação oral, puramente sonora; dessa recitação ininterrupta, por gerações. Foi nessa espécie de conversa humana que a leitura é, que ela se organizou como laboratório de linguagens, máquina de proliferação de ritmos, câmara de ecos, montanha santa de paradoxos, palimpsesto, emaranhado, sobreposição experimental de signos e de relatos, súmula, vibração polifónica, work in progress e Revelação. O que a Bíblia é só a leitura o mostra. A partir dos IIIº e IIº séculos a.c. (quando na Alexandria helenística se compôs a tradução grega chamada dos LXX ou Septuaginta), é que o corpus bíblico passou a ser chamado ta biblia («os livros»). Mas diz o Talmud que os anjos choraram nesse dia.

Luis Miguel Cintra lê para consolar esses anjos.

José Tolentino Mendonça