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AS 10 CANÇÕES DE CAMÕES
texto de apresentação para o lançamento da edição, 9 de Setembro de 2011, Teatro da Cornucópia

A VOZ ALTA DA POESIA

Quando o Luis Miguel Cintra entrou na Faculdade de Letras de Lisboa, onde eu já estava de saída (só com uma ou duas cadeiras atrasadas, em particular uma “triste e árida” Linguística Alemã, creio), por alturas de 1966, 1967, eu tinha começado a organizar, com o Grupo de Teatro, que a Luiza Neto Jorge dirigira, no princípio da década, alguns recitais de poesia, cujos programas iam da fabulosa canção de escárnio “Non me posso pagar tanto”, de Afonso o Sábio, que nos fora revelada pelo Professor Lindley Cintra, até poemas recentes, como “Litania”, de Eugénio de Andrade, “Portugal”, de Alexandre O’Neill, “Ácidos e óxidos”, de Ruy Belo, ou “Os frutos frios por fora”, da Luiza.
Rapidamente o Luis Miguel se integrou no conjunto de estudantes-actores, aparecendo no palco do Anfiteatro I, para interpretar o papel do Moço no Auto dos Físicos de Gil Vicente, a sua estreia, penso, como actor. E daí passara, é claro, para o Grupo de Poesia. O já referido “Portugal”, de O’Neill, por exemplo, foi um dos primeiros poemas que ouvimos na sua voz.
Entre Afonso X e Luiza, Ruy Belo ou Fiama, não faltavam, naturalmente, poetas como Camões, Cesário, Pessoa.
Eu sempre entendera que é em voz alta que a poesia adquire a sua máxima capacidade expressiva e comunicativa, e Camões parecia-me um caso com especiais virtualidades neste aspecto. Tentarei justificá-lo um pouco mais adiante. Antes devo falar um pouco da minha aproximação do poeta, que se tinha dado progressivamente, desde as referências que lhe fazia o meu pai, um simples leitor amador de poemas, fossem eles “O melro”, “O Fiel” ou “A lágrima”, de Guerra Junqueiro, que tinha recitado em sociedades recreativas, comovendo os públicos respectivos, fosse a cantiga de Camões sobre o mote “Perdigão perdeu a pena,/não há mal que lhe não venha”, que sabia de cor e eu gostava de o ouvir dizer.
Já o tenho afirmado, não saí do velho quinto ano do liceu traumatizado pela divisão de orações n’Os Lusíadas. Talvez lamentasse que, nas aulas, dadas por um professor de Clássicas, latinista pouco aberto aos voos poéticos, não tivesse havido um pouco mais de sensibilidade para sublinhar o valor da palavra poética de Camões, as imagens, os ritmos. Mas até já escrevi um poema intitulado Divisão de orações, que está n’A Moeda do Tempo, em que falo do prazer que, em larga medida, me causava a descoberta da classificação das orações, introduzidas pelos variadíssimos “ques”: “causais comparativas integrantes / relativas finais consecutivas / concessivas (...)” Isso era, afinal, leitura, compreensão das estrofes, apreensão da sua mecânica prodigiosa.
Passado o liceu, o fascínio foi sempre aumentando, talvez mais fixado, depois, nas elegias, nas canções, na sextina, nas oitavas, mas sem as separar nunca, assim como os sonetos, do todo que formam com Os Lusíadas. Alguns dos meus primeiros livros, A Doença, Outro Nome (subintitulado “poema em dez canções”) e mesmo As Aves, documentam a forte ligação que a minha poesia procurava manter com Camões. Na primeira edição de Outro Nome, em 1965, inseri, no final, seguindo o exemplo de Eliot, em “The waste land”, as notas referentes à integração, no poema, de versos de Camões, e estes versos provêm tanto da lírica como d’Os Lusíadas.
Admirava convictamente o extraordinário talento de João Villaret (em 1958 e 1959 não perdia um dos seus programas, em directo, na RTP – e, na casa universitária onde então vivia, era impressionante como, durante essa meia hora, ou coisa assim, a sala se enchia de estudantes atentos àquela voz nasalada e, por vezes, um pouco declamatória) e rendia-me, em absoluto, aos incendiários recitais de Maria Barroso, no Técnico, em Medicina, a convite das perseguidas associações ou pró-associações de estudantes, ou, numa tarde histórica, apresentada por Maria de Lourdes Belchior, no belo salão, o anterior ao incêndio, do Teatro Nacional, onde, em pleno salazarismo, ela voltava pela primeira vez, para declamar a “Xácara das bruxas dançando” de Carlos de Oliveira, “Estradas”, de Manuel da Fonseca, e “Os dois sonetos de amor da hora triste” de Álvaro Feijó, os mesmos poemas, entre outros, por causa dos quais tinha sido expulsa daquele teatro, após actuações memoráveis em A Casa de Bernarda Alba, de Lorca, como Adela, ou como protagonista de Benilde ou a Virgem-Mãe de Régio. No dia seguinte ao recital no D. Maria, naquela sala, que tinha várias ordens, como um pequeno teatro, a abarrotar de gente, muita dela estudantes, Mário Dionísio comentava entusiasmado, no café onde, com Carlos de Oliveira, José Gomes Ferreira, Cochofel, e muitos outros, nos reuníamos, que os aplausos tinham sido “tauromáquicos”.
Admirava, realmente, esses declamadores, que, de resto, com o seu notabilíssimo sentido do ritmo e da importância de cada pormenor do verso, conseguiam, nos seus melhores momentos (faço esta restrição, pensando sobretudo em Villaret), levar aos ouvintes a intensidade profunda da poesia que apresentavam. Porém, tinha uma concepção um tanto diferente da forma como se poderia ir mais longe na captação da densidade e do rigor construtivo dos poemas, sem pôr de parte, pelo contrário, as suas virtualidades dramáticas (não digo teatrais, embora também no teatro seja necessário – e tantos o esquecem – saber valorizar cada sílaba, cada palavra e cada frase, como acontece na poesia).
Na sala do Grupo de Teatro, onde ensaiávamos, pus na parede o “Poema de Helena Lanari”, acabado de sair, na 1ª edição de Geografia, em 1967:

Gosto de ouvir o português do Brasil
Onde as palavras recuperam sua substância total
Concretas como frutos nítidas como pássaros
Gosto de ouvir a palavra com suas sílabas todas
Sem perder sequer um quinto de vogal

Quando Helena Lanari dizia o “coqueiro”
O coqueiro ficava muito mais vegetal


Sim, nós queríamos que as palavras recuperassem “sua substância total”, queríamos “ouvir a palavra com suas sílabas todas” – e queríamos dá-las a ouvir desse modo.
Ao reouvir agora estas “Canções” de Camões, na voz de Luis Miguel Cintra – e digo “reouvir” porque já conhecia a primeira gravação e porque o ouvi dizê-las de novo, recentemente, no Festival de Almada – foi bem essa a sensação que voltei a ter, a de as palavras recuperarem “sua substância total”, o que, se é importante em relação a todos os poetas, se torna de uma necessidade evidente no caso de Camões.
Disse atrás que a poesia de Camões possui uma vocação particular para ser dita em voz alta e prometi tentar justificar esta convicção.
Penso que isso sucede, em grande parte, pela forte carga dramática que o poeta põe nos seus textos, que são, muitas vezes, uma espécie de monólogos, de grande intensidade emocional, muito concentrada, que se vai mantendo ou aumentando à medida que o poema se desenvolve, num trabalho de construção artesanal sem falhas.
Nos recitais da Faculdade de Letras, costumava programar as elegias “O sulmonense Ovídio, desterrado” e “Aquela que de amor descomedido” e a apresentação desses poemas, que eram ditos de cor, como se de monólogos teatrais se tratasse, alcançava sempre um fortíssimo efeito de comunicação.
Julgo que, transmitidos com a naturalidade de alguém que estivesse a criar aquele discurso naquele momento, a fusão entre vida e linguagem, entre mundo e discurso, era perfeita e a clareza do texto tornava-se absoluta.
Recusava-se, portanto, a cedência aos efeitos mais ou menos declamatórios e às formas convencionais de dizer poesia, para tentar dar-lhe aquela verdade que é, simultaneamente, a própria verdade da vida, e do amor, se pensarmos em Camões, e a verdade da poesia como facto de vida.
Camões estava bem consciente desse imperativo, o de que era a verdade da vida a substância dos poemas autênticos, e várias vezes o formulou – em versos que conhecemos, como no soneto “Enquanto quis fortuna que tivesse” – “(...) Quando lerdes / num breve livro casos tão diversos, verdades puras são (...)”, na “Canção VIII” – Canção, se já não queres / ver tanta crueldade, / lá vás onde verás minha verdade.”, ou na “Canção X”: “Nem eu delicadezas vou cantando / co gosto do louvor, mas explicando / puras verdades já por mim passadas.”
Sabemos como esta verdade é, para o poeta, a verdade das palavras, da emoção vivida nas palavras da poesia, como é essa “a dor que deveras sente”, saltando para um poeta mais próximo de nós, mas somente no tempo cronológico.
Muito recentemente, respondendo a uma pergunta acerca dos motivos por que, imitando o verso de Ruy Belo “Pessoa é o poeta vivo que me interessa mais”, eu escrevera “Ruy Belo é o poeta vivo que me interessa mais”, respondi, entre muitas outras coisas, é claro, que de bom grado subscreveria igualmente a frase de Ruy Belo sobre Pessoa, ou poderia até dizer “Camões é o poeta vivo que me interessa mais” – e, conforme os dias, qualquer das três afirmações pode fazer, para mim, sentido.

Gastão Cruz